Ó Paí, Ó: uma colagem de tempo, identidade e resistência
- Darlís Santos

- 5 de ago.
- 3 min de leitura
Atualizado: 21 de ago.
Em 2023, fui convidada pela Globo Filmes para integrar o time de artistas responsáveis por criar uma nova versão do cartaz de um de seus filmes, em comemoração aos 25 anos da produtora. Durante a criação também pude utilizar fotografias tiradas por mim mesma durante passeios em minha cidade. Este projeto visual nasce como um tributo ao filme Ó Paí, Ó, mas se expande para além da homenagem: é uma construção com base no afeto, sendo simbólica e crítica que propõe uma releitura da obra por meio da linguagem da colagem. Através de uma costura de imagens, cores, texturas e símbolos, a arte busca transmitir a força ancestral, a vivacidade cotidiana e a potência cultural do povo de Salvador. Guiado pelo conceito africano de Sankofa, que nos ensina a olhar para trás como forma de avançar, o projeto se organiza em três pilares: passado, presente e futuro.

Passado
A partir da história do filme, cada elemento visual presente na arte foi cuidadosamente selecionado para trazer à tona as referências das cenas, falas, trilha sonora e da energia vibrante que permeia a produção. Os búzios, por exemplo, simbolizam a religiosidade e as tradições afro-brasileiras que atravessam as personagens e seus cotidianos. As janelas representam o cortiço e os lares compartilhados, traduzindo visualmente a ideia de comunidade, coletividade e resistência frente à precariedade.
O sorriso dos personagens, que surge mesmo diante das adversidades, aparece como uma força política, símbolo do humor como ferramenta de sobrevivência. Já a musicalidade, expressa visualmente pelo violão e pelas bocas cantantes, remete ao personagem Roque e seu sonho de ser cantor, mas também representa a própria Salvador, onde música e palavra se entrelaçam em cada esquina.
As cenas de Cosme e Damião mergulhando no mar, os prédios do centro histórico, o trio elétrico de Timbalada e a presença de símbolos como Olodum completam esse mosaico de referências que fazem do passado um território vivo de memória e identidade.
Presente
O presente pulsa nas entrelinhas da composição. Mais do que revisitar a história, a arte procura transmitir o impacto duradouro que Ó Paí, Ó teve, e ainda tem na cultura baiana. A produção levou Salvador para o centro da narrativa nacional, com protagonismo, voz e sotaque. A cidade não é apenas cenário, mas personagem. A arte, nesse sentido, evidencia a maneira como a estética do filme segue viva no cotidiano soteropolitano: nas cores das casas, nos grafismos dos blocos afros, nas músicas que ainda ecoam, nas lutas sociais que permanecem.
Apesar de seu tom de comédia, o filme levanta discussões profundas sobre racismo, desigualdade, pertencimento, fé e sonho. A composição visual reflete esse equilíbrio, sobrepondo elementos que sugerem leveza e poesia, mas também tensionam o olhar com gestos de denúncia e resistência. O presente é, aqui, um território de afirmação: de cultura, de identidade, de poder.

Futuro
A construção do futuro, nesse contexto, se dá pela continuidade do sonho. Ao incorporar elementos como molduras, céu azul, pássaros e nuvens, a arte convida o olhar para uma dimensão poética, de liberdade. Esses elementos remetem à fala de Roque, quando ele recita Fernando Pessoa:“Eu sei que não sou nada e que talvez nunca tenha tudo. À parte isso, eu tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Esse trecho, e sua representação visual, tornam-se um manifesto de esperança. Um chamado para imaginar o amanhã mesmo em meio à dureza do hoje. O projeto entende que a produção Ó Paí, Ó não pertence apenas ao seu tempo de lançamento, ela continua influenciando olhares, inspirando criações e criando novas camadas de leitura e interpretação com o passar dos anos.
Assim, o futuro é também esse lugar onde arte, cultura e memória se encontram para produzir novas narrativas. Narrativas em que Salvador segue sendo protagonista, em que corpos negros continuam sonhando e criando, e em que o passado não é esquecido, mas sim honrado como fundamento do que virá.

Este trabalho é, acima de tudo, um gesto de respeito: à memória que constrói, à cultura que resiste e aos sonhos que insistem em nascer, mesmo nas gretas e rachaduras. A partir da colagem, linguagem que usa o destruído para reconstruir, propus uma composição que mistura tempo, símbolo e sentimento, criando um espaço onde o passado dialoga com o agora e projeta futuros possíveis.
Porque como diz Roque, mesmo quando não temos tudo, “temos em nós todos os sonhos do mundo.”
Se você quiser conhecer mais sobre a aplicação prática desse projeto (com exemplos visuais, peças digitais e desdobramentos), recomendo conferir o post nesse link.





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